...Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.
...Sabem o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota.
Porque eu não sou por mim. Existo reflectida, ardível em paixão. Como a lua: O que brilho é por luz de outro. A luz desse amante, luz dançando na água. Mesmo que suja assim, agora, distante e fria. Cinza de um cigarro nunca fumado.
... Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns. (COUTO, M. A Despedideira in: COUTO, M. O fio das missangas. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 51-54)
Mia Couto é Africano de Moçambique. Seu estilo inconfundível aproxima de forma magistral prosa e poesia. É um dos escritores de literatura africana de língua portuguesa mais conhecidos. Couto tem contribuído muito para difundir no Ocidente a beleza da cultura africana, apenas recentemente difundida por essas paragens; uma cultura ainda pouco conhecida e, muitas vezes, pouco valorizada.
ResponderExcluirMuito bom, Ana. Gostei demais! Fico querendo conhecer mais dele...
ResponderExcluirObrigada, abraços!