terça-feira, 21 de julho de 2020

Vou te contar um segredo

 É possível falar do que poderia ter sido? Já parou para pensar em todas as coisas em sua vida que poderiam ter sido, mas não foram? Não digo aquelas que você escolheu não fazer. Não me refiro às opções conscientes, refletidas, pensadas e pesadas. Penso nos pequenos atos involuntários de recusa: o olhar que não sustentou, a mão que você segurou, para que impulsivamente não tocasse outra, parecendo ter vontade própria; o beijo que, por um triz, você não se permitiu; o salto que você não deu, a estrada que não trilhou; a palavra que não disse. Um lampejo de desejo que esteve prestes a se concretizar, mas que ficou apenas no seu pensamento. Ninguém soube. Nem você mesma se permitiu pensar ou sentir, mas que, denso e robusto desobedeceu sua razão e surgiu forte, fora do seu controle. Coisas que ficaram no universo do quase, ações que, por uma fração de segundo, não aconteceram, sabe-se lá por que razão. Censura? Autocensura? Ação inconsciente do superego castrador? Superforçadevontade? Ou por razões mais altruístas, como não magoar alguém, por exemplo?

O que poderia ter sido não se realizou, mas fica encasulado e latente, e tocá-lo, ainda que de leve, pelas vias da memória, faz reavivar a potência de sua existência não concretizada, cuja energia faz esfriar a barriga e eriçar os pelos do corpo. Estranhamente, o que não existiu é capaz de despertar emoções indescritíveis e difíceis de nomear: medo, euforia, vergonha, recusa, culpa, susto... tudo ao mesmo tempo agora! A memória da sensação que poderia ter sido sentida se o ato se consumasse erige embrionária, inteira, explosiva e quente, mas não extravasa. Volta para junto do que não foi, empurrada por forças que a realidade, o cotidiano e a vida que escolhemos não permitem mais que se concretize. Entretanto, sabemos que a lembrança está lá, perdida em algum lugar da memória, que por vezes, é inesperadamente e inexplicavelmente acessada por um estímulo qualquer: um cheiro, uma música, um lugar, um objeto, um pensamento, alguém.

Porém devo repetir: Isso que não foi, não poderia mesmo ter sido. E por isso, é belo. E por isso, comove. Sinto saudade do que não fiz. Há coisas das quais me arrependo de não ter feito. Mas não são dessas que eu falo. Digo daquelas que quase fiz, que meu pensamento quase me fez acreditar que aconteceram, porque senti como se tivessem acontecido. Desejos que cruzaram rapidamente meu pensamento, mas que foram afastados com a mesma pressa pela minha razão. São esses que guardo com estima e os quais, às vezes, me permito reviver e experimentar as sensações que me provocam. O que poderia ter sido me lembra quem sou, de outras que fui ou que poderia ser, ou propõem uma promessa rascunhada de mim. 

O que poderia ter sido não poderia mesmo ter sido e deve permanecer envolto nessa névoa de pretensa realidade. Não dói não ter acontecido. Falo de um alegre não realizado. O que poderia ter sido são muitos. O que poderia ter sido é um tesouro que fui ajuntando em um baú de  pequenas lembranças esparsas. É com ele que brinco às vezes. Procuro as chaves, abro sua tampa abaulada e antiga, seu brilho me cega por um minuto. Levo a mão indecisa em sua direção. Não toco. Fico imaginando textura, temperatura, outras sensações. Torno a fechá-lo, para que sua beleza não se perca. É bom saber que está lá e que vai estar para sempre. Justamente porque só existe assim: em estado de pura possibilidade. @anaribeiro

Sentença

 Todo mundo vai morrer. Mas ninguém devia morrer de câncer. Porque de câncer não se morre... se vai morrendo... O gerúndio como o grande mal...