segunda-feira, 22 de junho de 2020

Pique-esconde: muito revela o que se oculta

Esse é um texto de memórias. Para que você o compreenda melhor, preciso dizer  de onde venho e de que lugar eu falo. É necessário esclarecer também que os pontos de vista se misturam entre este olhar de hoje e as lembranças de criança. Isto posto, apresento-lhes  a minha origem: brasileira, mineira do interior, criada no seio de uma família branca, católica, com raízes conservadoras. Entretanto, dentro desse contexto, posso me considerar privilegiada. Filha de professores: mãe formada pelo antigo curso normal e pai, pela vida. Ambos me deram, cada um, sua melhor parte, e foi a partir  desse alicerce que fui me construindo.

Desde que nasci, moro na mesma pequena Piedade do Rio Grande. - Sim.  Piedade do Rio Grande... Não é esse nome pura poesia? Era final da década de 1970. Minha casa localizava-se na rua que ficava nos fundos da delegacia. E é esse espaço de vivência infantil o mote principal para essa história. No coração dos chamados anos de chumbo, como ficou conhecida a ditadura militar no Brasil, passei toda a minha infância. Já ouvi muitos por aí  dizerem que não viram essa tragédia acontecer e que a repressão no país é uma narrativa de ocasião. Alguns dizem mesmo que sonham com a volta do Brasil dos "anos dourados", "quando tudo era bom, seguro e perfeito." Muitos suspiram pelas redes sociais. Os tais saudosos da lei e da ordem (impostas sob a força das fardas e dos coturnos); dos costumes conservadores  e da autoridade patriarcal (que escondiam o adultério, a pedofilia, a violência doméstica e a opressão feminina); da pobreza imensa (faltava comida, saneamento básico, acesso à saúde em proporções infinitamente maiores); do analfabetismo, do subdesenvolvimento, da desigualdade gigantesca e do apartheid racial  - naquela época muito maior, e o que é pior: naturalizado e invisibilizado.  

Pois bem. Preciso dizer que  eu também não vi os horrores cometidos nesse período. Ou, pelo menos, não vi no sentido mais literal da palavra,  principalmente porque era só uma criança e pairava sempre uma neblina embaçadora sobre tudo que dizia respeito a certos assuntos e ao universo dos adultos. Conversa de gente grande era conversa de gente grande, embora eu ouvisse muita coisa sem querer. E, diga-se de passagem, eu ouvia muita coisa que me tirava  o sono e a inocência que tanto queriam preservar.


Eram comuns as tardes na calçada depois da escola. Enquanto os vizinhos se sentavam para descansar do dia de trabalho e contarem os casos, as crianças brincavam de roda, de corda, de bola, de pique... Era assim que as pessoas se divertiam antes da internet (e da televisão até... Em tempos de redes sociais é quase inacreditável que isso tenha acontecido um dia, não é mesmo?)

Eu também vivia essa rotina. Na calçada, à tardezinha, a algazarra infantil antes do banho e do jantar. Mas por menos que eu quisesse, estava sempre ali, ouvindo coisas, o que me atrapalhava brincar também. Nunca fui muito boa em brincadeiras, acho que porque sempre estava com um bolo estranho no estômago, preocupada com coisas de adulto... antes da hora.


E durante essas conversas despretensiosas sempre havia os casos sobre a delegacia e também sobre a temida "caixa d'água", que até hoje tenho dúvidas sobre onde ficava, mas que acredito fosse uma extensão do destacamento da polícia militar. Um reservatório desativado para onde, depois da coça, eram levados os presos para passarem à noite. Havia sempre muitas histórias sobre as pessoas que eram presas e o que acontecia com elas... os métodos utilizados para corrigir quem precisasse "dormir no xadrez". Ouvia muitas conversas veladas sobre os gritos que os vizinhos ouviam e as técnicas que os policiais utilizavam para não deixar marcas nos corpos detidos. Os crimes? Na maioria das vezes, eram brigas de rua ou bebedeiras, quase sempre, envolvendo homens negros e pobres. No entanto, o que me causava pavor era o relato dos castigos... Esses sim, eram desproporcionais. E havia um método. Um método militar. Lembro-me dos policiais e de como eram chamados de "maus", em segredo. Seus sobrenomes (geralmente, pelos quais eram conhecidos)  me causam arrepios, ainda hoje. Eu nunca soube direito o que sentir ou o que pensar quando cruzava com algum deles na rua, mas certamente, não era sentimento de segurança ou de proteção o que eu experimentava. Então... baixava a cabeça e seguia. Com medo. Fui colega de turma e parceira de brincadeiras da filha de um deles, durante um certo período. E ficava pensando como seria esse homem em casa. Como seria esse pai, esse marido. Essa marca de insegurança, mesmo com as políticas de humanização da polícia, infelizmente ainda permanecem.

O fato é que a , "a disciplina", o autoritarismo e a violência dos policiais se repetiam na atitude de muitos pais de amigos meus que tinham um "método" também para corrigir seus filhos "rebeldes". Repetiam-se na maneira como muitos homens tratavam suas mulheres, na estrutura da igreja e da escola, na atitude dos professores. E foi através dessas instituições que eu vi a repressão acontecer.  Posso dizer, com tranquilidade que não tenho saudade desse tempo, porque essa aura opressora marcou profundamente a minha infância. Mesmo que não tenhamos sido presos, torturados, perseguidos, a lógica castradora, ameaçadora, impositiva e de censura perpassava todos os aspectos da vida em sociedade, até mesmo, na minha pequena Piedade, onde quase tudo demorava muito para chegar. As cicatrizes dessa complexa rede metodológica de educação da população ainda são visíveis e nos causam imensa vergonha. Esse reflexos estavam na minha família também. Embora meus pais fossem carinhosos e cuidadosos, podia perceber o quanto eram também reservados e reprimidos. Minha mãe, extremamente discreta, não se permitia falar muita coisa. Acho que não se permita mesmo pensar em muita coisa, quem dirá fazer... Era brava, tensa, preocupada, me parecia que estava sempre com medo de perder o controle e de errar com a gente. O sistema a subjugava profundamente.

Mas há sempre uma fissura em qualquer estrutura. Há movimentos e pessoas que simplesmente escapam dessa rede de poder que envolve uma sociedade. Há microluta, ainda que inconsciente.  Posso dizer que meu pai era uma dessas pessoas. Era mais leve. Extremamente observador e reflexivo, sempre gostou de me contar histórias. Primeiro as da bíblia, mas escolhia as que mais atiçavam minha imaginação: Adão e Eva, a construção da Torre de Babel, a Arca de Noé, a peregrinação de Maria, Herodes... mas não dava ênfase à castração, à violência, ao castigo e transformava tudo de uma forma que coubesse  na minha cabeça e avivasse minha imaginação. Enfatizava sempre o perdão e o amor nelas contidas. Além disso, me contava suas próprias experiências de menino e fazia desfilar, de forma muito viva na minha  mente, as figuras de sua infância real e transformava-as em personagens incríveis. Mas o que mais me fazia admirá-lo era sua capacidade de deixar sempre uma pergunta no ar, de me fazer um questionamento que eu não sabia responder e me deixar pensando em alguma coisa por horas e horas. Ele me mostrou que não havia respostas prontas e que uma narrativa podia ter ângulos e avessos diversos. E que tudo, absolutamente tudo, podia ser questionado. Foi meu primeiro professor de Filosofia, eu acho. Sua luta contra o sistema acontecia, primeiro, dentro de si mesmo, e depois, na maneira como nos mostrou a vida e nos educou.

Mas além dele, não havia muita coisa diferente. Todos os outros mecanismos eram repressores o que me transformou em uma criança muito obediente e comportada, além de medrosa e ansiosa. Por outro lado, sempre fui curiosa e muito desassossegada sobre o mundo e as pessoas e também insatisfeita com muitos dogmas, regras e costumes. Entretanto, ao invés de me rebelar,  culpava-me pelo que sentia e tinha medo, até mesmo dos meus pensamentos. 
No início da adolescência, tive consciência das perseguições, prisões, torturas. Tomei conhecimento de um grupo de estudantes presos, dentre os quais havia um piedense, hoje médico e pesquisador reconhecido, mas que carrega as marcas desse período eternamente em seu corpo, violentado por lutar contra  um sistema  autoritário e opressor. E foi assim que comecei a enxergar, ainda  que nebulosamente, alguma coisa.

No início da adolescência, já  no alvorecer dos anos de 1980, veio para a cidade um delegado (quando ainda havia delegados aqui), do qual não me recordo o nome, mas que foi apelidado de  "Cachimbão" por ter sempre um cachimbo entortando a boca debaixo de um espesso e escuro bigode. Tinha a fama de autoritário, pouco gentil, para dizer o mínimo. Chegou para ser  o terror dos que se recusavam a se encaixar na sua cartilha. Pais e professores diziam que foi destacado para por ordem na cidade, referindo-se às reuniões, encontros e ações naturais de jovens e adolescentes. No  meu entender, veio parar aqui porque tinha atitudes retrógradas e saudosistas, que tentavam ressuscitar  uma época  que  entrava em decadência  e que, na prática,  já não era mais aceita nos centros mais politizados. Lembro-me que todos os anos, a escola precisava participar dos tradicionais desfiles de sete de setembro e me recordo que em sua gestão, ele era chamado para ajudar nos ensaios. Ai de quem marchasse fora do compasso, ou colocasse mais força na perna errada, olhasse para trás, ou risse, ainda que por nervosismo. Eu, que nunca tive coordenação motora bem desenvolvida, um fracasso em danças ou esportes que exigissem reflexo rápido, vivia uma situação extremamente estressante, chegando a ter febre ou adoecer de medo, durante a semana de ensaios. Apesar de todo o aparato que construía essa figura, naquele momento, ele já era apenas um resquício da ditadura militar, uma caricatura de um período que havia sido derrubado e que não fazia mais sentido. Em alguns, como eu, despertava medo, mas em outros, provocava riso, deboche e desejo de transgressão. Hoje, comparo aquela figura com os personagens militares malhados por alguns programas de humor, como o Sargento Pincel dos trapalhões ou figuras dos quadrinhos, como "O recruta Zero", por exemplo.

Com a abertura política,  a anistia. Os exilados começaram a voltar. Foi aí que comecei a ouvir sobre a Tropicália, Chico Buarque, Gil e Caetano... Vandré. Somente fui ouvi-los, muito depois de seu tempo de produção, quando voltaram a ter sua música/poesia autorizadas pelo sistema. E somente muito mais tarde, ouvi falar sobre a resistência feminina, seja nos costumes, na cultura ou na militãncia: Leila Diniz, Elis, Rita Lee, Dilma Roussef, dentre outras. Na escola, era nítida a transição. Havia professores de linhas pedagógicas diferenciadas, o que acabava nos deixando meio confusos.  Vários docentes autoritários, ou muito sérios, disciplinadores, adeptos do sistema sob o qual foram forjados. Por outro lado, havia também os que já podiam ser engraçados, além dos questionadores. Estes, oscilavam entre o desejo de estarem na vanguarda da mudança e o hábito de ter que manter tudo e todos sob seu controle. Ainda guardavam - sem que percebessem - o alerta, o medo de falar, e de nos abrir a consciência. Mas apesar do receio, fizeram seu trabalho com paixão, muitas vezes trazendo informações que não estavam registradas nos livros didáticos.  Foi nesse contexto de sentimentos e atitudes conflituosas que fui formada.

Quando ouvia os fatos referentes ao golpe de 64, que na época ainda era chamado de "revolução", eu percebia o tamanho daquele momento histórico, e apesar de ficar profundamente ferida com as os relatos que eu ouvia, eles também me fascinavam. Era um período de reescrita da História, sob a ótica dos que lutaram e sofreram as agruras de um período de exceção, sem liberdade para pensar e falar sobre política, justiça social e outras questões sérias para o ser humano.
Quando alguns afirmam que não acontecia nada ao "cidadão de bem" durante a intervenção militar, referem-se àqueles que não se envolveram ou fingiram não ver, por comodismo, medo ou falta de informação.

Agradeço muito aos meus professores de História, os quais, mesmo que ainda apreensivos, me descortinaram esse universo de luta e resistência. O movimento das "Diretas Já" e a reconquista do direito ao voto foram as coisas mais maravilhosas que pude presenciar. "Coração de Estudante", na voz de Milton Nascimento ainda ecoa lindamente em  meus ouvidos. Vi Tancredo ser eleito e não assumir, Collor chegar à presidência e sofrer impeachment, a festa da Constituição Cidadã, o boom do pop rock nacional, o início da discussão sobre diversidade e inclusão... a era PT e seu sonho de justiça social... mas nada disso me fez compreender muito bem a política. Acredito que essa lacuna em nossa formação é que permite esse movimento cíclico em que ameaças ditatoriais, vez ou outra, acabem nos rondando.


Apesar do caos que estamos vivendo, penso que o momento é pedagógico. Ainda que o fluxo da história seja contínuo e o que vivemos hoje seja fruto de acontecimentos sucessivos e importantes ao longo do tempo, há uma transformação histórica  de grandes proporções acontecendo agora, diante dos nossos olhos. Embora a apreensão ainda ronde meu coração, há também sentimentos (positivos) diversos que ando experimentando. Gosto da sensação de fazer parte dessas discussões, de tentar compreender o momento no tempo mesmo em que ele acontece e de estar sustentando, de alguma forma, a honra de muitos que foram perseguidos, exilados, torturados, ou morreram por acreditarem e lutarem por um país mais justo, igualitário e democrático, que estávamos começando a ver existir de verdade. Há sobreviventes entre esses heróis. Estão, mais do que nunca, vivos e atuantes e é sob a luz que emanam, que vou, ao lado deles, tentando trilhar um caminho que se desvie do retrocesso que teimam em nos infligir.

O delegado Cachimbão está novamente entre nós e sua face é dúbia. Há uma possibilidade real de ameaça à democracia que deve ser enfrentada. Não com o medo que tanto me fez mal a vida toda, mas com a coragem e a resistência necessárias para preservarmos a liberdade e a independência que conquistamos a duras penas. Entretanto, essa ameaça, por outro lado, é uma imagem grotesca de um tempo que não existe mais, representada pela figura anacrônica de um presidente, cujas atitudes parecem fora do lugar, cujo discurso não cabe nesse tempo e não serve para pautar nossas necessidades; um político vaidoso, egoísta, preconceituoso, covarde. Um ser que evoca a tortura dos dissidentes e a eliminação dos opositores. Não é um liberal conservador, como tenta se afirmar, mas sim, uma versão tupiniquim e esquálida do fascismo que volta a assombrar o mundo. Uma figura tosca e mal acabada,  que nos faz rir de nervoso, que tenta nos tirar o sono e ser nosso pesadelo. Mas eu não tenho mais medo, e posso dizer para a menina que ainda me habita: "Pode brincar agora. Ainda é tempo. E depois, durma em paz.
@anaribeiro


Sentença

 Todo mundo vai morrer. Mas ninguém devia morrer de câncer. Porque de câncer não se morre... se vai morrendo... O gerúndio como o grande mal...