Moro em uma cidade muito pequena. Dessas do interior, onde o avanço científico e tecnológico, por mais rapidamente que se teletransportem não chegaram a destronar velhas e muito peculiares tradições. Os falecimentos são ainda um acontecimento comunitário, assim como os casamentos, os desentendimentos, as paixões e as intrigas. Tudo é anunciado. Se não pela rádio, pelo olhar, pelo cochicho.
Pelos sinos e pelo auto-falante, se sabe das festas, dos velórios, dos achados e perdidos. No centro da praça principal, a igreja dá os principais avisos: alegres ou fúnebres, com um fundo musical adequado à situação.
Um dia desses, avisaram via Matriz Santuário, mais um óbito. Minha filha pequena, curiosa e, talvez curiosa por demais, perguntou-me sobre o ocorrido. Queria saber o que estava sendo anunciado, de quem se tratava... Respondi como pude, introduzindo-a nesse momento, a mais um ritual da cultura local. Experiência que como outras semelhantes a tornaria, aos poucos, uma típica cidadã do lugar.
Insatisfeita com a resposta, contrariando as teorias da infância que prometem que uma resposta simples é suficiente para a criança satisfazer sua curiosidade imediata, não sendo necessário explicações complicadas e prolongadas, questionou-me com uma seriedade atípica para uma criança de sua idade: Por que não batem o sino pelos nascimentos?
Senti-me ferida de morte. Por que, do alto da minha experiência, e apesar dos longos anos de minha vida inteira, nunca pensei sobre isto? O dominó dos pensamentos associados foi inevitável. O ritual da vida que termina é realmente algo a que se dá muito destaque. A cidade vive invariavelmente no, mínimo, três dias de luto para cada cidadão que se vai. Fiquei achando que gostamos mais de celebrar aquilo que nos mata. Anunciamos a plenos pulmões a morte, a violência, a corrupção, a miséria, os desatinos. Por que damos tão pouco espaço para a vida, para o sonho, para a arte e a beleza?
E aqui, desse lugar tão pequeno, posso anunciar não pelo sino da matriz, nem pela voz tradicional do locutor responsável, que minha cidade é igual ao resto do mundo: Seja pelo auto-falante da matriz ou pela internet, não cansamos de evidenciar a dor que nos consome, mesmo que haja alegrias nos rondando, sem que nos permitamos percebê-las. Sem mudar de itinerário nas reflexões percorridas até aqui, mas já saindo um pouco da rota, aproveito uma pausa para um pequeno aparte: Aprendemos a dividir tudo em dois: bem e mal, vida e morte, culpa e prazer. Esquecemo-nos de que tudo é existência ou que a existência é um todo e que as coisas não se separam tão facilmente assim. Tornamo-nos seres duais, partidos, composto por partes opostas que não se abrangem. E é assim que vamos vendo o mundo e as pessoas.
Nascer e morrer. Duas pontas do mesmo fio. Duas pontas iguais, que se confundem no mesmo mistério. Enquanto não nos damos conta disso, e sabemos aproveitar com alegria o sabor de cada uma ou de ambas, permitamo-nos, ao menos, bater mais sinos pela vida.
@Ana Ribeiro
Ahhh, a inocência cruel das crianças... como diria Cazuza.
ResponderExcluirFantástico Ana, uma reflexão magnífica. Triste é saber que socialmente afundamos cada vez mais dentro da caixa; as crianças, ainda entrando, olham com mais facilidade pra fora, mas seguem, aos poucos, o ritual cruel da vida pronta. Questionar o estabelecido é o início de qualqer revolução.
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