quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Todas as canções de amor

 Todas as canções de amor eu cantarei para mim.

Agora eu cantarei para mim todas as canções de amor.

Cada palavra de afeto e de saudade

A paixão, a traição, o ciúme, o ódio cego.

Cantarei a humilhação,  a falta de amor próprio.

O pedido de perdão.

Darei todas as segundas chances. E não contarei a ninguém.

Direi tudo para mim mesma. Ouvindo minha própria voz como se a ouvisse pela primeira vez.

Deixarei cada nota roçar na minha garganta como arrepio na pele, rastilho, caminho, rota de fuga.

Depois, silenciosamente, experimentarei - com o coração acelerado - o sentimento que vier quando me vir nua e pronta.

@anaribeiro





quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Dáfne

 Definir as coisas como quem tateia

Sentir a palavra na carne 

Tocar-lhe 

Colocá-la na palma da mão, fechar e abrir os dedos, cheirá-la, olhá-la de banda, de cá e de lá

Sentir sua textura improvável, imprevista, mutável 

Preparar-se para enfrentar sua fúria, seu humor instável.

Preparar-se para o beijo urgente que lhe tira o sangue e o fôlego 

Ou melhor, não se prepare

Não se arme

Deixe-a vir 

Pegue-a com suas mãos isentas

Permita que escorra entre seus dedos 

Permita que se vá, que flua, que se transmute, que se solidifique, que espete sua pele ou que atravesse o seu peito, ou que lhe queime, ou que lhe acaricie suavemente. Somente deixe.

Seja o corpo em que ela vai se materializar e depois, deixe-a ir, assim como veio. 

Se ficar o perfume, um pedaço do vestido, o sangue no seu lábio, mostre-o ao mundo.






quinta-feira, 4 de julho de 2024

Rotina

 O pote de sal sobre a pia está aberto.

Sentada aqui,

desse lugar onde estou, posso ver que está aberta sua tampa vermelha.

Daqui, da ponta da mesa, vejo que tem uma colher dentro do pote de tampa vermelha . Uma colher com o cabo de madeira, pendente para o lado.

Até então, antes de estar aqui sentada, nesse descanso corrido das seis horas, banho tomado, cabelo cheirando a shampoo, não havia reparado.

No tamanho da cozinha, no pote de sal, naquela colher, em sua matéria gasta, pensada para não queimar a mão.

Mas sentada aqui, na ponta pouco visitada dessa mesa tão comprida, reparo.

Sempre há tempo de se olhar por outro ângulo.

E tornar a ver. 

@anaribeiro

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Linhagem

 A tua vida ajuda a tecer o tempo

Tu és 

Tu és a que foi e a que virá

És mãe e avó 

Tu geras e regeneras

És neta. Bisneta. Tetravó.

Sentes o cheiro? Tateias a cicatriz? Esse gesto? É não é teu.

És.


Tu és 

Tu és viagem 

Tu és passagem

Tu és passagem dessa língua arcaica para o teu símbolo, para o teu texto. Tu podes narrar-te agora. Imaginar-te. Recriar-te. Se queres. Mas não podes fugir das cores e das linhas, das vozes que ecoam pelos séculos.

Mas tu és.

Tu és eternidade.

@anaribeiro


sábado, 22 de junho de 2024

Diversidade

Existem e andam por aí os mesquinhos, os idiotas, os cruéis, os fracos, os covardes; os racistas, os misóginos, os machistas, os guardiões bíblicos da culpa e da espada.

 Sempre estiveram sobre a terra e habitaram entre nós. 

O problema é que todos são elegíveis, e chegam perigosamente ao poder.  Não há história que impeça. A humanidade, desde sempre, flerta com o demônio e se deixa seduzir.

Parir o mal eternamente. Eis nosso destino. 

O céu ao alcance é a hecatombe. O apocalipse.

Por isso Judas e Pilatos.

@anaribeiro





quinta-feira, 6 de julho de 2023

Sentença

 Todo mundo vai morrer.

Mas ninguém devia morrer de câncer.

Porque de câncer não se morre... se vai morrendo...

O gerúndio como o grande mal.

se vai morrendo:

de doença, de tristeza, de desengano, de raiva, de resignação, de despedida todos os dias,

de acordar e ver que acordou mais uma vez, de esperar, de ter esperança, de não ter esperança. 

Não é justo com a vida que resta esse cansaço de guilhotina à espreita.

@Ana Ribeiro


domingo, 16 de maio de 2021

Obtuário

Morreu Bené
Délia se foi
Dulce partiu
Filó descansou
Acabou-se Abreu


Dizem que ainda se vão mais uns muitos
mais de mil
mais de mil e cem
Dizem que ainda vão muitos, muitos mais que cem mil

Nessa conta Maria não entra


No começo teve medo. Fechou janela. Se escondeu da comadre. Desculpou-se com o Padre e não foi  comungar.
Mas agora  não tem mais susto, nem arregala os olhos, nem põe as mãos na cabeça.
Quinzin' morreu? É mesmo?  E nem levanta os olhos do tanque inundado até a boca, molhando sua barriga. E segue a segunda feira.

No começo era um horror: dez, cinquenta, quinhentos... Mas isso foi há muito tempo.
Maria já não conta mais.
É que agora... tem que tocar a vida.
@Ana Ribeiro




Todas as canções de amor

 Todas as canções de amor eu cantarei para mim. Agora eu cantarei para mim todas as canções de amor. Cada palavra de afeto e de saudade A pa...