terça-feira, 12 de julho de 2011

CORREDOR

A hora não passa no corredor
Também nós, não passamos juntos por ele.
Lado a lado não cabemos, nossas mãos não se tocam.
O corredor que me separa de você
tem quilômetros de extensão,
mas é por demais estreito.

Nossa casa é fria.
No corredor não entra luz.
Ele liga sala e quarto,
atravessa o quarto,
atravessa a cama...

Ontem,
antes de você se tornar tão estranho,
ocupávamos a casa toda
a cama toda.
Me esqueci do corredor dentro de mim
que me separa de mim mesma,
e de você.

A hora não passa no corredor,
mas coloca mais uma ruga em meu coração.
@Ana Ribeiro

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Pedagogia (Quero não, moça)

Uma escola para uma vida melhor
um trabalho para uma vida melhor
um carro para uma vida melhor
um telefone,
uma casa,
uma roupa
um cargo
um título
uma preferência
dinheiro
Para uma vida melhor, uma outra língua.


Precisa ser mais
precisa ter mais
precisa saber mais
precisa ser melhor
maior!

Uma vida melhor nunca é a minha.

Quero não, moça.

Para que dar tanta volta
se o que quero mesmo é um quintal com flores
o pôr do sol
meus pés e filhos no chão?
Carece não
perder tanto tempo.

Me deixe ir gostar do que tenho.
@Ana Ribeiro

segunda-feira, 4 de julho de 2011

São João del Rei

 
Torre barroca
Sagrado Lenheiro
teu incenso perturbador já me é familiar
embora não me reconstrua como um   cheiro de infãncia.
Impressionam-me esses olhos antigos
que semicerrados observam meus passos deslocados
por seus ladrilhos ainda sólidos.

É um olhar solene
para um novo estranho.

Impossível apreender-te em tua antiga novidade
que não se contenta em ser apenas velha.

Misturo-me.
Entre a buzina  e o angelus
o saber das pedras e dos homens
o sabor de tuas letras.

Entendo tua língua fronteiriça.
És como eu.

Foi preciso passar por aqui
para saber como as pedras
da minha mineira humanidade.
@Ana Ribeiro

sexta-feira, 1 de julho de 2011

DESALENTO

Afora as ondas,
não tenho experiência de mar.
Mas todos os dias eu barco vou em direção...
Meu horizonte é pétreo.
Iço e recolho as velas.
Faço água.
E não chego em terra.
@Ana Ribeiro

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Anomalias Evolutivas: Humandróides

Eu: andróide esquizofrênico.

Sou minhas próprias próteses.

O carro -  extensão das pernas
A lupa - extensão dos olhos
Do estômago - a panela.
O telefone para o ouvido
E conectado, totalmente: a tela.

Do medo, a unha arma
extensão do meu ódio, do meu receio.

Para cruzar a fronteira, a coleira
O abismo sem  frio na barriga: o limite seco
A queda em pleno voo.

Já não há liberdade nessas asas sem imensidão.

A palavra asa
rompe o casulo desajeitada, sem direção.

A palavra asa
fora do corpo ave
tomba, ferida no chão.

Já não há liberdade nessas asas sem imensidão.
@Ana Ribeiro

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Infância em todos os sentidos


O cheiro da terra molhada, do perfume da tia, da merenda do pré. O cheiro do carburador da Brasília, da laranja cravo, da venda do Zé. A fragrância da amiga da escola, do bolinho de chuva, do mimeógrafo. O cheiro da acetona da irmã vaidosa, do quarto de despejo. O cheiro da fazenda. O olhar doce da mãe, o olhar bravo do pai. O olhar orgulhoso do pai, repreensivo da mãe. O crepúsculo aos pés do Rosário. O olhar ciumento da irmã, o admirar auspicioso da avó. O olhar zombeteiro do melhor amigo. O beijo na mãe, aperto de mão dos colegas, o abraço na amiga, mão no ombro, lado a lado. O barulho da chuva forte na janela, o ronco estridente do motor da Brasília, a barafunda da pipa com o vento, a voz aveludada da tia, o grito da irmã caçula, a música alta no rádio  da vizinha, o canto do canário belga na porta da cozinha, a risada da irmã do meio, o tilintar do sino pascal. O som da igreja cheia, as ordens do irmão mais velho, a campainha esperada da escola, o grito de gol. O gosto amargo da gripe em dias de festa, o sabor do almoço de domingo, o primeiro beijo, a laranja azeda do quintal de casa, a dipirona pra febre, a torta tradicional, a sopa de fubá da cantina, os primeiros goles de cachaça na rua...
@Ana Ribeiro

sábado, 11 de junho de 2011

Eu: um delírio II



A véspera é a pólvora.
O futuro do tempo é agora.
O movimento para lá é incessante
Um instante que eternamente se desintegra
se desintegra e se reelabora . 

O futuro já não tarda.
Está mesmo aqui agora.
Onde? Já se foi?
A palavra bala já atinge o alvo pronta.
Atravessa-o fluido já pingando, desfirme.

O que era porta, vira torta,  via aorta não retorna.
A véspera é a pólvora de pavio curto
que não se inflama
O futuro do tempo é agora.

Eu: um muro, uma ponte, uma corda.
Que não liga, não toca, não prende.
Eu: um elo que não se fecha,
elo sem corrente.

Minha inutilidade é patética.

O tempo: seus passados e futuros somente existem em mim
E eu sou só presente.
@Ana Ribeiro

Batismo

 Seu nome na minha boca. Macio e doce na aspereza da minha língua. Ao dizê-lo, te construo, E te faço imagem e semelhança do amor que tenho....