sexta-feira, 1 de julho de 2011

DESALENTO

Afora as ondas,
não tenho experiência de mar.
Mas todos os dias eu barco vou em direção...
Meu horizonte é pétreo.
Iço e recolho as velas.
Faço água.
E não chego em terra.
@Ana Ribeiro

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Anomalias Evolutivas: Humandróides

Eu: andróide esquizofrênico.

Sou minhas próprias próteses.

O carro -  extensão das pernas
A lupa - extensão dos olhos
Do estômago - a panela.
O telefone para o ouvido
E conectado, totalmente: a tela.

Do medo, a unha arma
extensão do meu ódio, do meu receio.

Para cruzar a fronteira, a coleira
O abismo sem  frio na barriga: o limite seco
A queda em pleno voo.

Já não há liberdade nessas asas sem imensidão.

A palavra asa
rompe o casulo desajeitada, sem direção.

A palavra asa
fora do corpo ave
tomba, ferida no chão.

Já não há liberdade nessas asas sem imensidão.
@Ana Ribeiro

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Infância em todos os sentidos


O cheiro da terra molhada, do perfume da tia, da merenda do pré. O cheiro do carburador da Brasília, da laranja cravo, da venda do Zé. A fragrância da amiga da escola, do bolinho de chuva, do mimeógrafo. O cheiro da acetona da irmã vaidosa, do quarto de despejo. O cheiro da fazenda. O olhar doce da mãe, o olhar bravo do pai. O olhar orgulhoso do pai, repreensivo da mãe. O crepúsculo aos pés do Rosário. O olhar ciumento da irmã, o admirar auspicioso da avó. O olhar zombeteiro do melhor amigo. O beijo na mãe, aperto de mão dos colegas, o abraço na amiga, mão no ombro, lado a lado. O barulho da chuva forte na janela, o ronco estridente do motor da Brasília, a barafunda da pipa com o vento, a voz aveludada da tia, o grito da irmã caçula, a música alta no rádio  da vizinha, o canto do canário belga na porta da cozinha, a risada da irmã do meio, o tilintar do sino pascal. O som da igreja cheia, as ordens do irmão mais velho, a campainha esperada da escola, o grito de gol. O gosto amargo da gripe em dias de festa, o sabor do almoço de domingo, o primeiro beijo, a laranja azeda do quintal de casa, a dipirona pra febre, a torta tradicional, a sopa de fubá da cantina, os primeiros goles de cachaça na rua...
@Ana Ribeiro

sábado, 11 de junho de 2011

Eu: um delírio II



A véspera é a pólvora.
O futuro do tempo é agora.
O movimento para lá é incessante
Um instante que eternamente se desintegra
se desintegra e se reelabora . 

O futuro já não tarda.
Está mesmo aqui agora.
Onde? Já se foi?
A palavra bala já atinge o alvo pronta.
Atravessa-o fluido já pingando, desfirme.

O que era porta, vira torta,  via aorta não retorna.
A véspera é a pólvora de pavio curto
que não se inflama
O futuro do tempo é agora.

Eu: um muro, uma ponte, uma corda.
Que não liga, não toca, não prende.
Eu: um elo que não se fecha,
elo sem corrente.

Minha inutilidade é patética.

O tempo: seus passados e futuros somente existem em mim
E eu sou só presente.
@Ana Ribeiro

terça-feira, 31 de maio de 2011

Voyeur Parte II


A câmera, a luz, um click.
Nada escapa aos olhos: velozes e furiosos.
Na tela, no vídeo
Na ponta da sonda
No catéter.
A biópsia e autópsia.

Raio X, ultra som
o laser.
tomografia, cintilografia, ressonância.
Magnética é a imagem que acena.
Que entra em cena. Que encena
Imagem cênica, performática. Atrai e engana. Trai.

O homem e suas intermináveis invenções. Subtrai-se de suas vestes, de sua pele, de sua superfície. Desdobra-se expondo-se todo, pulverizando o segredo privado  que, guardado a sete chaves, mostra-se escancaradamente e não choca. Não mais do que durante aquele segundo em que as cortinas se abrem. Não há mais segredo. O segredo não faz mais sentido. Um eu que não se mostra é um eu que não existe.

O homem é sua própria imagem.
Olha para si e não se vê.
Instrumentaliza-se. Equipado sai em busca.
Plásticas, lipos, peelings.
Próteses.
Não há photoshop que mascare sua dor. A dor incansável de buscar o invisível. Aquilo que se ausenta da célula - milhares de vezes ampliada - , que foge do olho físico ou mecânico. Onde a sonda não alcança.


Porque não se vê, mostra-se. Nu. Do avesso.
É todo fora. Não há mais dentro que não se veja.
Estamos expostos. Para sempre expostos. Ao médico. Ao público.
O público e o médico: degustadores esfomeados deliciam-se  com o íntimo, o intrínseco. À mercê dos olhos  que nos vigiam de todos os lados. Os olhos dos outros e aqueles instalados por nós mesmos.

Exausto, o ouço (o homem ) segredar:
- Os olhos,
Fechá-los-ei um dia.
Espero descansar e não ser
exumado de mim.
@Ana Ribeiro

terça-feira, 24 de maio de 2011

Voyeur


A perna, a anca, a virilha, o púbis
o umbigo, a coxa, a cintura, o seio,
o peito do pé, a veia da mão, os braços,
o dorso, o ombro, o glúteo, o rosto.
O rim, o fígado, bexiga, útero,
testículos, ovários, pulmões, vesícula
coração, intestino, estômago e cérebro
o baço, o pâncreas, o apêndice, o reto
o tálamo, a uretra, a íris, o tecido.
O feto.

O corpo exposto
Na pele do rosto
No dentro do osso.

É preciso ver tudo
a qualquer custo.

O olhar ávido atesta:
Basta-nos ver.
(Ver sem parar.)
@Ana Ribeiro

quarta-feira, 4 de maio de 2011

NO FUTURO




No futuro não viveremos em redomas, nem vestiremos roupas sintéticas, capacetes bizarros ou nos comunicaremos por telepatia.
Penso na evolução como uma espécie de retorno. 
Quanto mais sofisticados se tornarem nossos mecanismos cerebrais, mais nos tornaremos parecidos com nossos longínquos ancestrais.  Detalhe: Por opção.
Deixaremos de ser sedentários.
Estaremos em contato maior com a natureza.
Comeremos apenas para sobreviver.
Não poluiremos.
As teorias médicas e científicas mais modernas apontam esse "modus vivendi" como receita para uma vida longa e feliz.
Viveremos em bandos, cada vez menos isolados.
Vamos nos organizar segundo as necessidades do grupo e não segundo nossos próprios interesses.
Poderemos andar nus se quisermos.
Não consideraremos o outro um estranho inferior: porque é fêmea, ou macho,  ou porque não é fêmea nem macho; possui pêlos mais claros, ou  mais escuros, ou não os possui; não seremos  rejeitados, temidos, injustiçados, abandonados ou  violentados seja lá por que outro motivo estranho qualquer. 
Não haverá gênero ou raça ou dinheiro que nos torne desiguais por causa de nossas diferenças.
Raça nenhuma. Nenhum gênero. Senão o humano.
Dividiremos a terra e a água.
Procuraremos a cura na natureza.
Protegeremos nossa cria a qualquer custo.
Construiremos armas menos letais.
Baniremos as armas.
Deus será algo como o entrelaçamento entre eu e o universo.
Comungaremos com o universo mais uma vez. Porque escolhemos assim.
A única diferença que talvez  (talvez) exista entre nós mesmos e aquilo que a arqueologia de nossa história nos revela, será a consciência do amor que temos uns pelos outros.
Demoramos milênios para compreender o que estava bem diante do nosso nariz.
Estamos evoluindo?
Quem sabe.
@Ana Ribeiro

Batismo

 Seu nome na minha boca. Macio e doce na aspereza da minha língua. Ao dizê-lo, te construo, E te faço imagem e semelhança do amor que tenho....