quarta-feira, 27 de julho de 2011

Queixa

Há muito que as distâncias não separam
e que o tempo corre atrás dos homens.
Há muito que não há mais tarde, nem nunca
e que é impossível não estar só.
Há muito que te queria aqui, mas já vais longe.
As palavras jazem no olvido...
Bastam os olhos. Escutar não faz mais sentido.
Essa é a era do tombo.
Quem vai curar meus joelhos?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Piedadezinha Qualquer


A saudade tem itinerário. Som, sabor, cheiro.
A saudade tem um rosto imaginário, e fala com língua própria.
Na cidadezinha, Piedadezinha de que agora me lembro, habitavam seres que somente posso avistar quando recordo seus odores, e se minha língua roça a textura das rosquinhas, do pão de queijo, da rosca de fermento, do biscoito de polvilho que escuto desmanchar-se junto com  minha saliva  e a chuva no telhado  a embalar meu sono nas noites sem luz elétrica.  Meus olhos me traem e de suas imagens, e de seus nomes, somente me recordo, naquele sotaque próprio daquelezinho meu lugar.
Padrintião, Tialica, Bastião Jorge, Samaria, Fuso, Padijair: somente podem continuar existindo porque se tornaram palavras. Essas pessoas só existem assim, com esses nomes. Minha lembrança só os compreende e os reconstrói se chamados assim. É a língua que minha memória fala e que meu presente entende.
A farmácia do Sô Taíde, com seus tubos, vidrinhos, vidrões, líquidos coloridos que mais pareciam poções mágicas.
Na esquina da “rua do meio”, a venda do Totonho. Pasmem: O Bataclã. Ainda sinto o cheiro do açúcar exposto em um saco umedecido e melado,  enrolado na boca, aroma que se misturava ao do café moído na hora, do fumo de rolo e da cachaça. No Bataclã se achava de tudo: até calcinha para menina moça.
Do outro lado, logo em frente, a grande loja do Zé Sirvino com seus balcões imponentes, piso de granito, seus tecidos e sapatos maravilhosos. A meus olhos de criança, um pedaço da cidade grande ali, tão deslocado. A entrada do porão, fechada com portão de vidro gradeado, sob o degrau da porta da frente da loja, mexia com minha imaginação. Sempre quis enxergar através do vidro fosco em que dimensão ia dar aquela passagem. A construção de dois andares parecia um palácio - rodeada por  casinhas já envelhecidas, desbotadinhas - naquela pequena vila, com suas ruas empoeiradas que desciam em desvãos imensos e acabavam em planícies gramadas, onde eventualmente se armava uma tenda de circo. E aí  era festa. A festa da minha noite de criança que só nesses dias podia durar até nove horas.
A casa grande da Marinácia, quitandeira de primeira e seu marido prático, Gerado'Stevo, de quem me lembro em meus delírios febris da infância. A injeção guardada no estojo de aço inoxidável, cujas agulhas eram esterilizadas na hora do uso em água de fervura. Com seus  óculos na ponta do nariz empurrava o tenebroso e enorme êmbulo para tirar o ar do percurso que o remédio faria. E já me doía uma dor antecipada por saber que não conseguiria escapar dos pulsos fortes do pai que me segurava.
A casa grande da Marinácia, em cuja calçada de pedra nos sentávamos à sombra, para fugir do sol do meio dia, após uma travessura qualquer e víamos passar tantos personagens que hoje me parecem mais figuras saídas de contos de fadas: Maneluca, Zico, Bitota... Paraná, Tião Pachola, Arcidi (Alcides) pé-de-pato... figuras encantadas, que viveram e morreram como quiseram, fazendo inveja aos lúcidos e justos e sérios. Há sempre Manelucas, Zicos, Bitotas, perambulando por essas antigas novas ruas de qualquer cidadezinha qualquer.
Posso sentir agora esses mesmos cheiros, o gosto quente da broa de fubá saindo do forno nas manhãs de sábado, o alto-falante  da igreja que já queria substituir o sino, me acordando nas manhãs de domingo, e eles me ajudam a  mapear esses caminhos que já não existem.
Corro para me sentar de novo naquelas pedras, nas pedras enormes da casa grande e fugir do presente cintilante que me cega a lembrança. A casa não está mais lá. Construíram uma esquina na calçada dos meus sonhos.
@Ana Ribeiro


terça-feira, 19 de julho de 2011

Desalento II

 
  Picasso - Mulher ao espelho


Não me levanto cedo, nem arrumo minha cama.
Não enfeito as meninas, nem ajeito seus cabelos.
Cozinho mal.
Não faço faxina aos sábados, nem arrumo minhas gavetas.
Embora sinta muita vontade. De sentir vontade, talvez?
Pinto minhas unhas de vermelho, mas só de vez em quando.
Quase nunca aliso os cabelos... Minha boca é pálida.
O pior é que não sinto o que deveria.
O pior é que não sinto o que deveria.
Nem avental, nem um longo glamouroso. Nem o uniforme, ou o que quer que seja.
O melhor é que não sinto o que deveria.
Torno-me uma a cada dia. Mas passa.

Às vezes me canso de escrever também.
@Ana Ribeiro

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Ladainha

Tudo que eu digo já foi dito
milhares de bocas, de ouvidos, de sentidos, há séculos ecoam na minha voz.
Minhas palavras estão cobertas por uma poeira milenar.
Não há novidade em mim.
Repito e perpetuo virtualmente
a rocha pré-histórica do pensamento.


Minha palavra é senil.
E definha.
@Ana Ribeiro

quinta-feira, 14 de julho de 2011

terça-feira, 12 de julho de 2011

CORREDOR

A hora não passa no corredor
Também nós, não passamos juntos por ele.
Lado a lado não cabemos, nossas mãos não se tocam.
O corredor que me separa de você
tem quilômetros de extensão,
mas é por demais estreito.

Nossa casa é fria.
No corredor não entra luz.
Ele liga sala e quarto,
atravessa o quarto,
atravessa a cama...

Ontem,
antes de você se tornar tão estranho,
ocupávamos a casa toda
a cama toda.
Me esqueci do corredor dentro de mim
que me separa de mim mesma,
e de você.

A hora não passa no corredor,
mas coloca mais uma ruga em meu coração.
@Ana Ribeiro

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Pedagogia (Quero não, moça)

Uma escola para uma vida melhor
um trabalho para uma vida melhor
um carro para uma vida melhor
um telefone,
uma casa,
uma roupa
um cargo
um título
uma preferência
dinheiro
Para uma vida melhor, uma outra língua.


Precisa ser mais
precisa ter mais
precisa saber mais
precisa ser melhor
maior!

Uma vida melhor nunca é a minha.

Quero não, moça.

Para que dar tanta volta
se o que quero mesmo é um quintal com flores
o pôr do sol
meus pés e filhos no chão?
Carece não
perder tanto tempo.

Me deixe ir gostar do que tenho.
@Ana Ribeiro

segunda-feira, 4 de julho de 2011

São João del Rei

 
Torre barroca
Sagrado Lenheiro
teu incenso perturbador já me é familiar
embora não me reconstrua como um   cheiro de infãncia.
Impressionam-me esses olhos antigos
que semicerrados observam meus passos deslocados
por seus ladrilhos ainda sólidos.

É um olhar solene
para um novo estranho.

Impossível apreender-te em tua antiga novidade
que não se contenta em ser apenas velha.

Misturo-me.
Entre a buzina  e o angelus
o saber das pedras e dos homens
o sabor de tuas letras.

Entendo tua língua fronteiriça.
És como eu.

Foi preciso passar por aqui
para saber como as pedras
da minha mineira humanidade.
@Ana Ribeiro

sexta-feira, 1 de julho de 2011

DESALENTO

Afora as ondas,
não tenho experiência de mar.
Mas todos os dias eu barco vou em direção...
Meu horizonte é pétreo.
Iço e recolho as velas.
Faço água.
E não chego em terra.
@Ana Ribeiro

Sentença

 Todo mundo vai morrer. Mas ninguém devia morrer de câncer. Porque de câncer não se morre... se vai morrendo... O gerúndio como o grande mal...