sábado, 26 de março de 2011

O retrato

De um lado da parede, a moldura antiga protegia a face jovem da menina. Olhos doces, expressão inocente. Seu vestido branco, parecia pintado pela imaginação do artista. Lábios sem sorriso insistiam em levar meus olhos para os da menina, recém nascida para a minha observação.   Lábios sem sorriso, que me levavam para dentro. Sem sorriso os lábios, os meus e os dela.
À sua esquerda, outra moldura. Seu marido, ainda moço, guardava-lhe o lado. Já seriam um casal naquele dia em que o retrato fora tirado? Em preto e branco, as figuras guardavam um quê de sonho.  De irrealidade. É certo que existiram. Foram mesmo marido e mulher. Tiveram filhos. Os mesmos que os penduraram ali. Sobre o aparador, guardiães póstumos da mesa de jantar.

Na outra parede, um porta-retrato  moderno juntava os dois. Agora ligados por um passo de valsa. Na foto colorida, o glamour de uma já longínqua noite de festa. Eram um casal agora . Um casal há mais de cinquenta anos. Os cabelos brancos dela. Os dele, nem tanto ainda. O olhar duro dela. A firmeza da mão que segurava a dele. Os lábios severos apertados, após o treino de uma vida para se tornar a mãe  que construiu o pai. E aquela casa. Onde teria se perdido aquele olhar doce da menina que me observava do outro lado? 

Os pares se olhavam. Não é possível saber se dali onde estavam podiam se reconhecer.
A sala era a  mesma. Que os viu de longe e de perto. Que os ouviu sussurrar, sorrir, chorar, ralhar com as crianças, oferecer doces e quitutes, ouvir das visitas as histórias de casamentos, doenças, falecimentos. A mesma sala. Que viu aqueles olhos se modificando junto com a vida. Teria sido feliz? Teriam sido felizes? Não há outra imagem unindo as duas pontas. Havia apenas a de antes, e aquela, de muito depois.

A sala agora emoldura seus rostos. E suas vidas. Ainda é guardiã do tempo. Aqueles rostos ainda guardam a mesa, ao redor da qual outras histórias foram sendo contadas. 
Há uma filha que não se casou. A memória lhe falta. Não reconhece mais seus semblantes. Eles a observam. Cantam para ela à noite. Embalam seu sono. Ela ri. Balbucia, cantarola, como se repetisse antigas parlendas.  Dança uma ciranda. Quem sabe não dançam com ela? As molduras do passado protegem seu passeio ininterrupto pela sala. Vigiam. Ela vai e volta. Seus olhos, cristalizados pelo tempo, a seguem sem parar, quem sabe, levando-a pela mão.
@Ana Ribeiro

quarta-feira, 9 de março de 2011

Quarta-feira de cinzas

 Fonte: torcedorcoral.com



Coloca-se novamente a máscara.
O rosto outra vez compenetrado. Pensamentos sem folia.
Alma de ressaca.

O bar da esquina tem apenas uma porta aberta.
É hora de varrer para fora o lixo das últimas risadas, agora esquecidas, despedaçadas, imóveis, espalhadas desfalecidas pelo chão.
Um bêbado na calçada insiste em segurar o instante. Inútil.

Rua suja.
De um jeito triste. Imóvel sujeira surda.
Alegria morta. O bêbado sorri.
É o limite.

Fiéis passam para a missa.
A música é outra.

Na boca ainda ébria da véspera
um sorriso samba mesmo assim.
@Ana Ribeiro

Sentença

 Todo mundo vai morrer. Mas ninguém devia morrer de câncer. Porque de câncer não se morre... se vai morrendo... O gerúndio como o grande mal...