sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A Despedideira (Mia Couto) - vestígios rápidos

     ...Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.
     ...Sabem o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota.
     Porque eu não sou por mim. Existo reflectida, ardível em paixão. Como a lua: O que brilho é por luz de outro. A luz desse amante, luz dançando na água. Mesmo que suja assim, agora, distante e fria. Cinza de um cigarro nunca fumado.
     ... Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns. (COUTO, M. A Despedideira in: COUTO, M.  O fio das missangas. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 51-54)
     

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

NONSENSE

Eu sempre ouvi:
um dia a casa cai.

Desde criança:
um dia é da caça o outro do caçador.

Antigamente:
quem com ferro fere com ferro será ferido
olho por olho dente por dente.

Parece o homem: lobo do homem,
em diálogo consigo mesmo.

Mas agora, é o barro que fala.

Quem quer ouvir?

O homem barro
enlameado até os dentes.

De volta à casa.
Para sempre ao pó.

A casa caiu.
Aos milhares.
E os dentes, e os olhos e o ferro.

O ditado velho ficou novo de novo.

A palavra gasta não serve mais.
É tarde para reconstruir.
Até mesmo os velhos discursos.
@Ana Ribeiro pela tragédia das chuvas em Petrópolis/Teresópolis em janeiro de 2011.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Navegar é preciso


No limiar revelador da mudança
Noite passa dia, todos os dias
Aurora tão longe do crepúsculo
E sonhos que fogem à realidade

As garças já não são as mesmas
quiçá os homens e suas crenças
Corrente forte, navio atracado
O mar convida sempre a avançar

Estações, flores, seca e chuva
Meu egoísmo sobrevive soberbo
E estouros festejam o novo ano
Escuridão, luzes e tanta gente

Alento motriz de tantos tontos
Quem não se segura a oculta fé
Empacados mantêm nossos barcos
Esperança somente na bela maré
@Ana Ribeiro

Sentença

 Todo mundo vai morrer. Mas ninguém devia morrer de câncer. Porque de câncer não se morre... se vai morrendo... O gerúndio como o grande mal...